A improvisação de Carlitos
Elias Thomé Saliba
A invenção do cotidiano
Michael de Certeau
Tradução: Ephraim Ferreira Alves
Vozes, 351 págs.
A vida cotidiana, no seu misto de inércia e rotina, nunca constituiu um tema muito nobre para as ciências humanas, nem fundou uma escola de historiadores ou cientistas sociais. Foi só através de um intenso exercício de inquietação crítica, que rejeitava grandes teorias sociais e construções abstratas, que o tema do cotidiano foi ganhando espaço nas ciências humanas nos últimos dez anos. Exercício de reflexão estimulado pelas próprias experiências históricas mais recentes, nas quais a cultura passou a ser celebrada como motivadora de significativas transformações sociais.
Publicado originalmente em 1980, "A Invenção do Cotidiano", de Michel de Certeau, é um livro pioneiro nesse exercício de desvendar as práticas culturais contemporâneas, vistas aí, não mais do ângulo elitista da razão técnica e produtivista, mas pelo lado mais fraco da produção cultural: o da recepção anônima, da cultura ordinária, da criatividade das pessoas comuns.
Para além de certa vertigem populista, por aí já se vê que estamos diante de um livro difícil que não se contenta em definir, ingenuamente, o popular através do povo e/ou vice-versa. Profundamente insatisfeito com as teorias sociais, que pintam o quadro de uma sociedade estruturada em papéis abstratos e estereótipos, Certeau procura esboçar uma teoria das práticas cotidianas e identificar uma espécie de lógica operatória nas culturas populares. Lógica do avesso e da teimosia, fundada quase que apenas no real, pois recusa a escrita como espaço da dominação e do controle; lógica do informal, porque utiliza suas táticas conforme as estratégias dos outros; lógica do instável, porque, sem qualquer ponto de ancoragem emocional busca, afinal, a própria sobrevivência.
Lógica que é muito mais uma "arte de fazer", pois as experiências do homem ordinário não se deixam aprisionar pela linguagem escrita: quer se trate da voz do selvagem, dos primeiros relatos etnográficos, do ato de assistir TV ou de enveredar pelas inesperadas ruas das grandes cidades. Certeau quer buscar uma lógica cujos modelos remontam talvez às astúcias multimilenares dos peixes disfarçados ou dos insetos camuflados e que, em todo caso, é ocultada por uma racionalidade hoje dominante no Ocidente. Por isso, busca exemplos em tradições, provérbios e atitudes que a cientificidade do Ocidente ocultou: a "Arte da Guerra" de Sun Tze, da tradição chinesa; ou o "Livro das Astúcias", da tradição árabe.
Mas encontra "artes de fazer" em todas as sociedades: cita episódios relacionados às gestas de Frei Damião, no Brasil; episódios de "Robinson Crusoé" ou, até, do impagável Carlitos, de Chaplin. Com seu bigodinho e andar de pato, Carlitos tece a rede de uma antidisciplina: rejeita destinos prévios e trajetórias previsíveis, e resiste, com a leveza do lúdico, a toda situação opressiva. Na improvisação sem limites, Carlitos rejeita toda mecanização, procura sempre contornar a dificuldade em vez de resolvê-la e, nesta sua não-aderência às coisas e aos acontecimentos, parece revelar-nos que os objetos de nossa cultura se inscrevem no vazio, não têm qualquer futuro, a não ser fora do sentido que a sociedade lhes atribui.
Por que na cultura, a eficácia da produção teria que produzir necessariamente uma eficácia no consumo? Demontando a suposta passividade do leitor-consumidor, Certeau nos oferece páginas luminosas sobre a atividade da leitura. Mais que mera submissão ao mecanismo textual -do livro, do espetáculo ou de qualquer outro produto cultural-, a leitura é um "ato de espreitamento", uma viagem de nômade, sem paradas obrigatórias: o telespectador lê a paisagem de sua infância na reportagem de atualidades, pois ler "é constituir uma cena secreta", lugar onde se entra e se sai à vontade; é criar cantos de sombra e de noite numa existência submetida à transparência tecnocrátrica. Ou, como concluiu poeticamente Marguerite Duras: "Talvez se leia sempre no escuro... a leitura depende da escuridão da noite. Mesmo que se leia em pleno dia, fora, faz-se noite em redor do livro".
Nem o marxismo, nem as concepções liberais, com suas ambições totalizantes, foram capazes de perceber na vida cotidiana este espaço de gestação de processos alternativos, de esperteza e de inventividade, que se forjava à revelia dos cerrados processos de hegemonia e dominação na modernidade. Certeau faz verdadeiros malabarismos teóricos para se equilibrar entre Freud, Foucault e Bourdieu, mas parece encontrar inspiração nos inquietantes fragmentos de Wittgenstein. Talvez porque o historiador saiba, como o "homem ordinário" de Wittgenstein, que a página em branco é um lugar desenfeitiçado das ambiguidades do mundo e que as narrativas do cotidiano estão mais próximas da intensidade da vida real.
Elias Thomé Saliba
A invenção do cotidiano
Michael de Certeau
Tradução: Ephraim Ferreira Alves
Vozes, 351 págs.
A vida cotidiana, no seu misto de inércia e rotina, nunca constituiu um tema muito nobre para as ciências humanas, nem fundou uma escola de historiadores ou cientistas sociais. Foi só através de um intenso exercício de inquietação crítica, que rejeitava grandes teorias sociais e construções abstratas, que o tema do cotidiano foi ganhando espaço nas ciências humanas nos últimos dez anos. Exercício de reflexão estimulado pelas próprias experiências históricas mais recentes, nas quais a cultura passou a ser celebrada como motivadora de significativas transformações sociais.
Publicado originalmente em 1980, "A Invenção do Cotidiano", de Michel de Certeau, é um livro pioneiro nesse exercício de desvendar as práticas culturais contemporâneas, vistas aí, não mais do ângulo elitista da razão técnica e produtivista, mas pelo lado mais fraco da produção cultural: o da recepção anônima, da cultura ordinária, da criatividade das pessoas comuns.
Para além de certa vertigem populista, por aí já se vê que estamos diante de um livro difícil que não se contenta em definir, ingenuamente, o popular através do povo e/ou vice-versa. Profundamente insatisfeito com as teorias sociais, que pintam o quadro de uma sociedade estruturada em papéis abstratos e estereótipos, Certeau procura esboçar uma teoria das práticas cotidianas e identificar uma espécie de lógica operatória nas culturas populares. Lógica do avesso e da teimosia, fundada quase que apenas no real, pois recusa a escrita como espaço da dominação e do controle; lógica do informal, porque utiliza suas táticas conforme as estratégias dos outros; lógica do instável, porque, sem qualquer ponto de ancoragem emocional busca, afinal, a própria sobrevivência.
Lógica que é muito mais uma "arte de fazer", pois as experiências do homem ordinário não se deixam aprisionar pela linguagem escrita: quer se trate da voz do selvagem, dos primeiros relatos etnográficos, do ato de assistir TV ou de enveredar pelas inesperadas ruas das grandes cidades. Certeau quer buscar uma lógica cujos modelos remontam talvez às astúcias multimilenares dos peixes disfarçados ou dos insetos camuflados e que, em todo caso, é ocultada por uma racionalidade hoje dominante no Ocidente. Por isso, busca exemplos em tradições, provérbios e atitudes que a cientificidade do Ocidente ocultou: a "Arte da Guerra" de Sun Tze, da tradição chinesa; ou o "Livro das Astúcias", da tradição árabe.
Mas encontra "artes de fazer" em todas as sociedades: cita episódios relacionados às gestas de Frei Damião, no Brasil; episódios de "Robinson Crusoé" ou, até, do impagável Carlitos, de Chaplin. Com seu bigodinho e andar de pato, Carlitos tece a rede de uma antidisciplina: rejeita destinos prévios e trajetórias previsíveis, e resiste, com a leveza do lúdico, a toda situação opressiva. Na improvisação sem limites, Carlitos rejeita toda mecanização, procura sempre contornar a dificuldade em vez de resolvê-la e, nesta sua não-aderência às coisas e aos acontecimentos, parece revelar-nos que os objetos de nossa cultura se inscrevem no vazio, não têm qualquer futuro, a não ser fora do sentido que a sociedade lhes atribui.
Por que na cultura, a eficácia da produção teria que produzir necessariamente uma eficácia no consumo? Demontando a suposta passividade do leitor-consumidor, Certeau nos oferece páginas luminosas sobre a atividade da leitura. Mais que mera submissão ao mecanismo textual -do livro, do espetáculo ou de qualquer outro produto cultural-, a leitura é um "ato de espreitamento", uma viagem de nômade, sem paradas obrigatórias: o telespectador lê a paisagem de sua infância na reportagem de atualidades, pois ler "é constituir uma cena secreta", lugar onde se entra e se sai à vontade; é criar cantos de sombra e de noite numa existência submetida à transparência tecnocrátrica. Ou, como concluiu poeticamente Marguerite Duras: "Talvez se leia sempre no escuro... a leitura depende da escuridão da noite. Mesmo que se leia em pleno dia, fora, faz-se noite em redor do livro".
Nem o marxismo, nem as concepções liberais, com suas ambições totalizantes, foram capazes de perceber na vida cotidiana este espaço de gestação de processos alternativos, de esperteza e de inventividade, que se forjava à revelia dos cerrados processos de hegemonia e dominação na modernidade. Certeau faz verdadeiros malabarismos teóricos para se equilibrar entre Freud, Foucault e Bourdieu, mas parece encontrar inspiração nos inquietantes fragmentos de Wittgenstein. Talvez porque o historiador saiba, como o "homem ordinário" de Wittgenstein, que a página em branco é um lugar desenfeitiçado das ambiguidades do mundo e que as narrativas do cotidiano estão mais próximas da intensidade da vida real.
ELIAS THOMÉ SALIBA é professor de teoria da história do departamento de história da USP, autor de "Utopias Românticas
Folha de São Paulo
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